8 segundos

Foram duas temporadas de espera e preparação. Quando em 2011 tomei conhecimento do ciclismo de longa distância, já me senti atraído. Busquei informações e acabei descobrindo que naquele ano tínhamos um único goiano a ter participado do PBP. Fiquei motivado a conhecer cada vez mais sobre o assunto, quando em 2012 já estava realizando eventos randonneur na cidade de Goiânia. Em 2015 não tive como priorizar o PBP ficando na vontade e torcendo pelos amigos de Brasília que foram participar, pois nenhum goiano tinha ido. Finalmente chegou a minha vez, PBP 2019, e comigo mais dois conterrâneos, seria a maior presença de goianos no evento.
Confesso que minha preparação não foi das mais efetivas, afinal conciliar trabalho, família e treinos não é nada fácil. Porém foquei nos desafios “randonneurs” como preparativo. Foram duas séries de 200 km, duas de 300 km, duas de 400 km, um flechè (360 km), uma de 600 km e uma de 1000 km. Durante a semana treinos curtos de no máximo 1 hora e 30 minutos, duas vezes na semana, no circuito do autódromo. Quando possível treinos de 100 km no final de semana. E assim chegou a partida para Paris.
Tudo novidade, mas sempre confiante que daria certo. As dúvidas iam sendo eliminadas a cada etapa. Despacho da bagagem, confirmação da entrada no hotel, encontro com outros brasileiros e ciclistas de outras localidades. No hotel onde estava hospedado, ciclistas da Tailândia, Japão, Rússia, Itália, Espanha, Grécia. Todos muito receptivos, comunicando com o inglês básico e o “mimiquês” avançado.
No sábado, 17, mais uma emoção nos esperava, bike montada, testada e ajustada, seguiria para o local de vistoria das bikes, mesmo local de início do PBP. Estava muito chuvoso, e assim apresentei a bike para a vistoria (verificados farol, lanternas traseiras e suporte das garrafinhas), recebendo o kit em seguida.
Flavio Oliveira - local da largada no PBP 2019
Local para aguardar a retirada do kit (Arquivo pessoal)
Durante todo o restante do sábado, inclusive a noite, muita chuva. No período da manhã do dia 18 a chuva aumentou, e a apreensão também. Afinal começar um pedal com chuva não é nada bom, e ainda mais numa região que predomina o frio na madrugada, pior ainda. Mas felizmente, pouco depois do meio-dia a chuva parou e os raios de sol despontaram, e assim permaneceu no restante do dia, até o início da prova e nos demais dias.
Domingo, 18/08, 18:15. Pontualmente, foi dado o início da nossa jornada. No grupo haviam 300 ciclistas, e para mim sempre novas emoções. A paisagem deslumbrante, a medida que desenvolvia o giro os grupos se formavam conforme o ritmo de cada um. E a partir que a distância ia aumentado encontrava ciclistas que tinham saído primeiro e também era alcançado pelos que saíram depois. A cada cidade que passávamos recebíamos aplausos e éramos motivados.
Flavio Oliveira - Concentração para largada no Paris-Brest-Paris
Concentração para saída (Arquivo pessoal)
Eu não tinha uma estratégia definida, afinal tenho comigo que o papel aceita tudo e quando se vai implementar as mudanças são inevitáveis. Usei como referência o fechamento dos pontos de controle. O primeiro ponto de controle (KM 217) cheguei com 4 horas de antecedência para o fechamento, nada mal para o começo. Não encontrei fila para o registro do passaporte, e assim tive uma surpresa, afinal os comentários que tinha recebido era de que perderia muito tempo nas filas dos PCs. E desta forma foram em todos os demais pontos de controle.
Deslumbrava com as passagens pelas cidades, arquiteturas belíssimas e o mais impressionante a empolgação dos moradores. Durante a madrugada encontramos diversas famílias servindo chá, café e biscoitos. Quando algum ciclista oferecia dinheiro para ajuda era rejeitado, deixando claro que não estava servindo por dinheiro. Uma criança me abordou, e a outros ciclistas também, entregando um papel com endereço e pedindo para enviar um cartão postal. O semblante daqueles voluntários mudava quando recebia uma lembrança.
Flavio Oliveira - Arquitetura do interior da França
Cidades com arquitetura deslumbrante (Arquivo pessoal)
Cheguei em Brest quase na metade do tempo da prova, e fiquei em sinal de alerta, pois o retorno exigiria ainda mais, pelo percurso e cansaço. A parada foi breve e coloquei como objetivo reduzir o tempo nos pontos de controle. A segunda parada de um sono mais prolongado foi na cidade de Loudeac, ficando pouco mais de duas horas. A saída foi superdifícil, um frio congelante e as pernas travadas. O corpo pedia para ficar, mas a cabeça dizia para continuar. Segui lentamente, até que o giro ficasse agradável e conseguisse desenvolver novamente um ritmo randonneur.
Flavio de Oliveira - Com voluntário no PBP
Alegria de um voluntário ao saber que eu era do Brasil (Arquivo pessoal)
Caminhava para o km 1000, comecei a pensar nos amigos que em outros PBPs haviam parado neste ponto. O comentário é que era o ponto de corte, e muitos ficavam por lá. Seria mais uma mensagem do meu corpo? Reergui a cabeça, mentalizei no PC seguinte, e para minha surpresa, na cidade de Villaines-La-Juhel uma grande festa para receber os ciclistas. Ali passou o meu cansaço, e senti como se tivesse sendo recebido por minha família e amigos. Gostaria de ter aproveitado mais, conversado mais, conhecido mais sobre aquela gente, mas o meu tempo era curto e o objetivo era enfrentar mais uma noite, a última do percurso.
Saí meio que tímido, e as palmas me emocionaram, sabia que era um adeus para aquele momento. À minha frente não via qualquer ciclista, e imaginei se teria ficado apenas eu. Ou somente eu teria seguido? Entrei na estrada e nenhum ciclista, bastou a primeira curva na escuridão e uma centena de luzes vermelhas serpenteando na rodovia. Estava agrupado novamente. Neste trecho tive vários lampejos de sono. Algumas paradas dormindo igual “cavalo”, ou seja, em pé apoiado na bicicleta, em locais mais “agradáveis” conseguia dormir em um abrigo de ponto de ônibus, eram muitos ciclistas dormindo ao relento.
Entrava na reta final, passagem pelo antepenúltimo PC e pausa de uma hora e trinta minutos de sono. Já na estrada o sono pedia várias paradas curtas, o vento batia nos olhos e os cochilos eram iminentes. Parava, fazia “power naps” e continuava. E assim cheguei ao último PC, em Dreux. Era 10:07 quando o sistema registrou, às 10:13 o cartão foi anotado e às 10:20 estava na bike novamente. Era minha última chance, mais 45 km e pouco mais de 1 hora e 30 minutos para completar no tempo. Só me restava fazer tudo que não tinha feito durante todo o percurso. Esqueci de tudo, não liguei para smartphone, não via quem me acompanhava. Fui passando vários ciclistas, olhava o tempo e senti que estava andando bem, mas não o suficiente para chegar no tempo. Faltando 15 km, um grupo ciclistas Belgas chegou quase que atropelando, tamanha a velocidade, consegui encaixar na roda, mordi os “beiços”, senti lágrimas nos olhos tamanha a dor nos joelhos, como dizemos em Goiás, foi “sangue nos zói ”. A velocidade era insana, e as subidas parecia que estávamos deslizando. Quando deparei com as subidas que ainda restavam, agradeci a Deus por aqueles ciclistas terem aparecido, por eu ter encontrado forças para acompanhá-los e seguir até a cidade de Rambouillet. De repente, na entrada da cidade eles param para esperar um amigo, o meu tempo era curto e apenas acenei com um muito obrigado. Restavam menos de 3 minutos, quando entrei no parque. As pessoas acenavam com palmas, queriam bater na minha mão, mas tive que ser deselegante, acelerei, parecia que estava à procura de um banheiro, passei o primeiro pórtico, e aquele ziguezague para chegar no sensor de registro. Meu GPS marcava 89h59min. Desabei de alegria, não estava acreditando que havia conseguido. Senti falta da vibração da minha família e amigos que estavam no Brasil, mas sabia que me acompanhavam. Verifiquei no aplicativo oficial, cheguei faltando 8 segundos para fechar no tempo. CONSEGUI!!!!!
Flavio Oliveira - Tempo Final do PBP - 8 Segundos
Tempo final (Arquivo pessoal)
Agora é tentar relembrar tudo de novo, contar a todos para não esquecer, compartilhar com aqueles que um dia tenham a coragem de enfrentar a aventura mais épica do ciclismo de longa distância.
Flávio Cavalcante de Oliveira
Brazucas no PBP 2019: Flavio Oliveira
 

Mais relatos de brasileiros sobre o PBP 2019

» Paris Brest Paris, le retour du jedi por Darley Cardoso
» PBP 2019 – Paris-Brest-Paris por Christiano Goulart
» Caceta, eu tô na França! por Rodrigo Mateus
 

Veja também

» A História do Paris-Brest-Paris
» Estatísticas e curiosidades sobre a participação brasileira no Paris-Brest-Paris
» Saiba mais sobre os Brevets Randounnerus e Audax, o Ciclismo de Longa Distância
» Confira o relato de Flavio Oliveira sobre o BRM 1.000 – Brevet Cerrado

Comentários

Faça o seu comentário

O seu e-mail não será publicado. *Campos de preenchimento obrigatório.

6 + 14 =