Relato Audax 600 – Randoneiro Cristal

Por Júlia Heide

Rafael, Júlia e André, momentos antes da largada.
Rafael, Júlia e André, momentos antes da largada.

Largamos às 4h10, Eu, André e Ferrari, rumo à lanchonete Campos, primeiro PC, distante 46 km.
Largamos preguiçosos e silenciosos, e logo o Ferrari não aguenta e pergunta:
-Está feliz? E eu respondo:
-Não sei, ainda não cheguei.
Não sabia explicar o que estava acontecendo, mas comecei o dia introspectiva. Talvez pela minha natureza diurna, não me sinto confortável na escuridão. Seguíamos os três sem muita conversa, e em um giro lento e confortável.
25 km depois dobramos à direita no sentido da lanchonete, o asfalto por ali trepida um pouco mais que o normal aumentando minha tensão. Logo começam a aparecer ciclistas retornando do PC1 e nos cumprimentando, o Darley foi o primeiro a passar. Começa a amanhecer e já me sinto um pouco melhor. Mais adiante, o Luquita passa por nós e grita:
– Meu raio quebrou!
Nós três começamos a nos perguntar se era sério ou mais uma brincadeira do Luquita da Galera. Chegamos no PC1, muito bem recebidos pela organização, e logo o Francisco (da organização) começa a nos expulsar, a fama de enrolados nas paradas já nos acompanha. Francisco encosta em mim e dispara:
– Você, controle o tempo, não fiquem enrolando nos PCs.
Saímos de lá rapidamente, continuávamos por último, mas ninguém parecia estar muito preocupado. Logo o espírito do Fala Mais aparece junto com a Super Lua (ou seria o Sol?) e a tagarelice finalmente começa. O trajeto da lanchonete até a BR 050 foi marcado por uma discussão interminável sobre se o que estava no céu era a Super Lua ou o Sol. Eu e André tínhamos certeza absoluta que se tratava da Lua e o Ferrari afirmava com convicção que era o Sol, apostamos um almoço. E a música do Alceu não saía da cabeça:

Lua tão linda, lua, lua, lua de Olinda O sol abraça Recife tá chegando o carnaval, lua, lua linda”.

Na hora lembrei duplamente do Capitão Charles: a Lua se parece com a cabeça do Capitão / Capitão que fica com essas “palas” de música, o espírito dele está aqui. Enquanto eu pensava na música, ao mesmo tempo, André e Eu tentávamos convencer o Ferrari de que era a Lua, e ele não continha o riso das nossas caras e só dizia:
– Esperem as nuvens se dissiparem, e verão.
Finalmente as nuvens se esvaecem e as luzes do Sol pareciam nos cegar, Ferrari estava com a razão. Depois ele nos expos com a convicção de um engenheiro os motivos que o levaram a ter certeza absoluta. Eu e André já combinamos secretamente o pagamento do almoço.
Chegamos na BR 050, onde o asfalto melhora sensivelmente, e André já começa a alertar sobre a nossa baixa média de velocidade. Não estava bem e por mais que tentasse não conseguia aumentar muito o ritmo. Continuamos de papo furado até o primeiro PA da organização, com 92km acumulados. Quando chegamos, encontramos por lá alguns ciclistas, entre eles o Luquita, e descobrimos que era verdadeira a história do raio, alguém descobriu um telefone de uma loja de ciclismo em Catalão, que poderia ser a solução para o Luquita. Conversamos um pouco com pessoas da organização que ainda não tínhamos visto, e enrolamos mais um pouquinho. Quando saímos só restavam nós 3 no PA, e continuávamos seguindo por último, já sentindo um pouco mais a pressão do tempo, mas minhas pernas ainda não respondiam.

Parada no Posto Planet
Parada no Posto Planet
Logo chega o Posto Planet, encontramos vários ciclistas, inclusive o Luquita que não conseguia sinal para ligar na loja de Catalão, depois de algum tempo ele conseguiu contato, mas descobriu que a loja fecharia 12h30, ele precisaria ser rápido. Descansamos um pouco e partimos rumo à macarronada do Posto Eldorado que chegaria na altura dos 165 km acumulados.
Poucos quilômetros à frente a chuva resolve aparecer, e vinha com força. Eu olhava e tinha certeza que ela não duraria, André olhava e tinha certeza que seria longa.
Preparação para a chuva
Preparação para a chuva
Tomamos a decisão sensata e nos encostamos em uma árvore para vestir roupas de chuva. Enrolados que somos, levamos uns 15 minutos no processo, eu havia comprado um pacote de camisinhas para proteger as sapatilhas, mas apanhamos para tentar colocar, várias se rasgaram e quando saímos a chuva já havia passado. Eu só pensava: Se não tivéssemos enrolado, nem teria precisado parar para vestir a capa, que azar. Entramos em um novo dilema: parar ou não parar para tirar as capas. Seguíamos conversando fiado até que resolvemos parar e tirar a parafernália.
Melhoramos um pouco a velocidade, e meu humor estava quase normal. Quando chegamos, Luquita ainda estava por lá, logo partiu rumo a Catalão, mas voltou 5 min depois:
– Esqueci minha GoPro. Partiu de novo e voltou 3 min depois:
– Esqueci meus óculos. Partiu e voltou 2 min depois:
– Esqueci meu passaporte. Partiu e voltou 10 min depois:
– Esqueci meu cofrinho. E 12h30 se aproximava…
Ficamos todos na tensão sem saber se o Luquita conseguiria ou não resolver o problema. Partimos encapuzados, pois, o asfalto estava molhado e com ameaça de chuva (o que se concretizou). Chegamos a Catalão (195 km acumulados) e aparentemente o problema havia sido “resolvido” ou pelo menos sido trocado por outro, agora estávamos na companhia do Luquita Duas Marchas Cai Cai Corrente da Galera. Luquita saiu na frente, mas 10 min depois voltou para buscar a cabeça. Ele partiu, e pouco depois fui atrás, devagar para dar tempo os meninos alcançarem.
Logo todos chegaram encontramos o Luquita mais a frente. Permanecemos juntos por um longo trecho. Luquita sai antes de nós na segunda passagem no Planet. Instantes depois o encontramos, agachado, ajudando um ciclista a trocar pneus. André não resistiu e fez logo um depósito na poupança, queria obter rendimentos até o fim do Audax. Seguiu ameaçando o pobre com novos depósitos, ele era obrigado a acelerar com apenas 2 marchas.
Seguíamos falando abobrinhas e o astral estava ótimo, apesar dos quase 300 km rodados. O sono começava a bater e chegamos ao Sonho Verde por volta de 1h da manhã. Eu estava inteira, mas já um pouco agoniada, queria dormir logo. Não esperei meus companheiros e segui sozinha rumo a Cristalina, apesar do sono seria o mais ponderado, já que ameaçava cair uma tempestade, o PC fecharia 5h20 e estava 30km dali, o cochilo antes seria apertado.
Nos primeiros kms já me arrependia da decisão de seguir sozinha, não conseguia pedalar a mais de 15km/h, ventava muito, o frio estava congelante, minha garganta e ouvidos doíam, e descobri que o trajeto do Sonho Verde até Cristalina é uma subida contínua. Vi vários animais e ficava preocupada de ter algum problema na bike e ser atacada. Quase em Cristalina fui alcançada pelo Ferrari que estava super disposto e pedalando forte. A volta para o Hotel e o desejado cochilo foi difícil, o sono queria me derrubar, mas quanto mais rápido voltássemos, maior seria o cochilo. Fomos conversando e nos distraindo do sono conseguimos chegar 4h30 (412 km acumulados) para descansar e partir novamente 8h.
7h50 André bate no meu quarto avisando que partiria, eu tinha acabado de acordar, abri a porta para cumprimenta-lo e ele saiu correndo com média de 40km/h, branco de susto. Atrasamos um pouco e partimos 8h30, Eu e Ferrari. Luquita também havia partido na frente. Acordei bem melhor, outra vibe, feliz por estar ali, feliz por estar com meus amigos e na certeza de que o desafio seria cumprido, até então eu estava na dúvida. Porém, o cochilo tinha que ser pago com as pernas, o PC fecharia 13h50, o tempo estava apertado, tínhamos menos de 6h para rodar 100 km, qualquer imprevisto poderia nos tirar da prova.
Rafael Ferrari e Júlia Heide no Audax Super 600km
Rafael Ferrari e Júlia Heide no Audax Super 600km – Foto: André Fugimoto
Decidimos fazer duas pernas mais fortes de 50km. No meio do caminho minha roda traseira trava, lógico que foi em uma descida, me senti em cima do touro bandido, a bicicleta sambava na pista eu tentava desclipar, não conseguia e já estava escolhendo o lado para cair, no último instante consegui parar a bike sem cair e fui verificar o que tinha acontecido: o alforge havia se soltado com a trepidação (Asfalto brasileiro 1 x 0 Topeak), alcancei o Ferrari e contei o “causo”, percebemos que o alforge gêmeo dele também estava se soltando. Encontramos com o André no PA do km 462 e seguimos os três em um ritmo bom até o último PC antes da chegada com 506 km.
Chegamos com folga e relaxamos novamente, voltamos em um ritmo tranquilo, com um pelotão grande (Eu, Ferrari, André, Luquita, Andréia e Dani Chokito) até o almoço no Posto Planet 14 km adiante. Todos partiram e restaram Eu, Ferrari e André. Fiquei pronta antes e parti lentamente, a essa altura já havia descoberto o que eram assaduras, e comecei a me incomodar e querer chegar logo. Os meninos me alcançaram e conversando com o Ferrari traçamos a estratégia de fechar os últimos 80 km em duas pernas um pouco mais rápidas. Paramos no último PA da organização, e seguimos com o plano. Encontramos o Luquita restando 20 km, no Posto Ponte Alta, e seguimos (Eu, Luquita e Ferrari). Restando 10km, eu queria me entregar para as assaduras, e o Ferrari me incentivou, começamos a mirar os coletes fluorescentes a nossa frente para chegar mais rápido e colocamos a meta de chegar antes de 18h30. Deu certo! Finalmente fechamos e corri para os braços do Bepantol.
Júlia Heide, finalista do Audax Super 600kmChegada
Foi uma experiência única, sentimos muita falta do restante do Pedala Mais. Apesar de ser uma prova individual, as pessoas e amigos que também participam da prova são um importante incentivo emocional. Não tenho certeza do que me fez não estar 100% no dia da prova. Alterei bastante minha rotina na semana anterior, estava com sintomas de TPM, e preocupada com coisas pessoais. Mas o prazer de fazer algo que se gosta é maior que todos os percalços cotidianos.
Finalistas do Pedala Mais no Audax Super 600km
Amigos do Pedala Mais – André, Ferrari, Eu, Darley e Luquita.

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