Relato do Brevet Cerrado – BRM 1000Km

Qual o seu limite?

Esta indagação me persegue a muito tempo, e quando penso que cheguei ao ponto máximo vejo o quanto posso ir adiante. E assim cheguei a mais um desafio randoneiro, também conhecido como Audax. Embora seja pouco tempo a minha participação em desafios randonneur, comecei em 2013, a ideia de participar em um brevet de 1000 km foi amadurecendo aos poucos, sendo agora o momento esperado.
Reunimos em 16 ciclistas no dia 20/06/2019, na cidade de Cristalina-Go, com o objetivo de participar do Breve do Cerrado – 1022 km, organizado pelo Clube Randoneiro Cristal. Alguns presentes mais experientes em longas distâncias, mas a maioria como o primeiro desafio de tamanha distância. Deste grupo, 6 participantes de Goiânia, ambos randoneiros formados no Audax Goiás. Tínhamos 75 horas para completar o percurso, onde o trajeto passaria pelas cidades de Araguari-MG, Uberlândia-MG, Monte Alegre de Minas-MG, Itumbiara-GO, Hidrolândia-GO, Piracanjuba-GO, Bela Vista de Goiás-GO, Goiânia-GO, São Miguel do Passa Quatro-GO, Cristianópolis-GO, Pires do Rio-GO, Tomazinópolis-GO, e chegada em Cristalina-GO.
Além da distância, ainda era preciso aceitar o nível de dificuldade das subidas, a amplitude térmica, o sono e as condições da estrada. Cada um dos fatores seria encarado no seu devido momento e exigência. E assim, às 7:20, após a preleção, orientação da organização e registro fotográfico, partimos para jornada que somente finalizaria no domingo (23/06) às 10h20min.
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Goianos no Brevet do Cerrado: em pé: Dirson, João Junior, Flávio, Ledson; agachados Wilson, Luiz (Arquivo Pessoal).
A primeira parte do percurso, até a chegada no primeiro ponto de controle, estava bastante convidativa, foram 111 km predominantemente de descida, o vento estava favorável, propiciando uma boa média de velocidade. Porém, pouco antes da chegada ao PC no restaurante Planet (Campo Alegre-GO) meu pneu traseiro fura, logo perdi o contato com o grupo que eu acompanhava, mas em tempo de corrigir o problema e alcançá-los antes da saída do posto. O primeiro ponto de controle era virtual, ou seja, bastaria um registro fotográfico ou comprovante de compra a ser apresentado à organização. Como o grupo que estávamos juntos já haviam se reorganizado a parada foi breve, 15 minutos, e seguimos adiante.
Cabe neste momento um parêntese. Nos preparativos para esse brevet, fizemos um estudo da carta de rota (documento disponibilizado pela organização com todos os pontos de controle do percurso) e observamos também as demais opções de alimentação e hidratação. Colocamos como meta alguns pontos estratégicos, estimativa de chegada e o tempo de parada. Desta forma tínhamos a expectativa de como estava a nossa performance. No papel é tudo lindo e maravilhoso.
De volta a realidade. Deslocamos por mais 45 km e paramos para almoçar, neste momento estávamos com 50 minutos de tempo antecipado do planejado. Retornamos ao percurso dentro do prazo, e chegamos ao segundo ponto de controle, em Catalão-GO, com tempo folga. O planejado era ficarmos no máximo 15 minutos, mas resolvemos fazer um lanche e passou da conta do tempo. Mas tudo bem, o tempo ainda era favorável.
Seguimos rumo à divisa GO/MG, onde fizemos uma parada estratégica para lanche e abastecimento. Sabíamos que o próximo trecho seria um dos mais difíceis, pois subiríamos a Serra de Araguari e em seguida a subida para Uberlândia. Em Araguari-MG, pausa para o jantar, macarrão, carne e verdura, saindo às 21:00. Enfrentamos mais subidas e chegamos em Uberlândia-MG. Lanche rápido e agasalhos preparados seguimos com o objetivo de chegar ao PC do sono, em Monte Alegre de Minas-MG, o mais cedo possível. A essa altura o cansaço se manifestava, mas ainda assim conseguia acompanhar o ritmo dos demais. Uma breve parada na localidade de nome Xapetuba-MG, hidratação e recuperação do folego. Giramos mais uns 5 km juntos e minhas forças minaram. Perdi o contato dos demais, e segui solo. Isso é normal para randoneiros, tentar seguir quem está mais forte é esperar a quebradeira e comprometer todo o desafio.
Assim, continuei no meu ritmo, e como o sono já estava quase me dominando, fiz pequenas paradas, recuperava e continuava. Às 2:50 chegava no PC do sono para o primeiro descanso.
ÀS 7:00 do dia 21/06 estava de saída para a próxima etapa. Avisei aos demais que seguiria no meu ritmo e que me alcançariam no caminho. Alcançaram pouco mais de 20 km e seguimos juntos novamente. Começaria um trecho com poucas subidas até a chegada do próximo ponto de controle, no posto Décio (Araporã-MG). A distância para chegar neste PC foi de 75 km e foi realizado sem qualquer parada. Pelo horário que chegamos (aproximadamente 10h30min da manhã) fizemos um lanche, com a intenção de chegar no próximo PC (Posto Alvorada – Goiatuba-GO) para o almoço.
No trecho após a saída de Itumbiara-GO, passando pelo Serviço de Atendimento ao Usuário senti a necessidade de um cochilo, pausa de 15 minutos, e senti revigorado. Sabia que a chegada ao posto Alvorada não era nada fácil, os últimos 5 km seriam de subida, e assim já fui preparado psicologicamente para enfrentá-la. No posto ainda havia muitos ciclistas descansando, aproveitei para fazer uma boa refeição, descansar e seguir o caminho. Enfrentaríamos a subida para chegar ao trevo de Goiatuba-GO, e o ritmo certamente seria menor. Nesse intervalo a “tocada” foi direto (cerca de 60 km), onde a parada foi em um restaurante após o trevo da cidade de Morrinhos-GO.
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Jantar com os PDRs próximo a cidade de Morrinhos (Arquivo Pessoal)
O jantar foi com outros colegas de Brasília, e pelo fato de já estar escuro, combinamos de seguirmos juntos até o próximo ponto de controle na cidade de Hidrolândia (Posto Z+Z). Tinha como meta chegar ao PC (605 km) no tempo estimado para este tipo de Brevet, que é de 40 horas. Consegui chegar um pouco antes. Fiz a hidratação e alimentação, e a pausa foi pequena, 15 minutos. Preparei para o retorno, com o objetivo de chegar no PC sono em Piracanjuba.
Entre o PC Z+Z até o PC do sono, foi necessária uma breve parada no Posto Floresta para recompor o sono que estava muito. Os 15 minutos foram suficientes para recuperar, e já no trecho de volta uma longa subida, onde reencontrei os amigos de Brasília e seguimos juntos até o local de parada. Chegamos por volta das 3h30. Fomos recebidos com uma excelente macarronada, e neste local o descanso foi até às 6:00, momento em que já estava na bike para seguir até o PC em Goiânia-GO.
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Amanhecer do terceiro dia – Piracanjuba-GO.
Durante este trecho foram duas paradas, Bela Vista (lanche) e Senador Canedo (hidratação). Estava na expectativa de encontrar a família e alguns amigos, e ao chegar no Posto AlphaMall lá estavam eles. Foi emocionante vê-los e sentir o quanto estavam torcendo para que conseguisse seguir adiante. A parada foi de 1h, onde conversamos e atualizamos o já havia passado.
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Recepção em Goiânia-GO – Lucas Rezende, Mônica e meu filho Lucas (Arquivo Pessoal)
Às 12h reunimos em um grupo de 4 ciclistas para retornar à cidade de Bela Vista, seria os últimos 290 km. Os sinais de desgaste já eram evidentes e no trecho de 40 km foram três paradas, uma para cochilo e outras duas para hidratação. Senti que estávamos perdendo rendimento e os prazos ficando apertados. Mesmo assim mantivemos a paciência. Na saída do GO-020 devíamos entrar sentido São Miguel do Passa Quatro, mas por descuido dois colegas seguiram reto na rodovia e não nos escutou. Ficamos sem ação, pois não tínhamos força para buscá-los. Caso fosse até o final da rodovia duplicada seria aproximadamente 15 km de desvio da rota, pelo nosso ritmo poderia ser convertido em quase 1 hora de pedal. Tentamos parar alguns carros e motos para chamá-los, chegou a tentar pagar alguém para ir atrás, mas sem sucesso. Por fim, um motociclista se dispôs a procurá-los e minutos depois retornou informando que já estavam voltando. Todos recompostos e reagrupados seguimos no caminho correto.
Começaria as subidas longas e fortes até a chegada em São Miguel do Passa Quatro. Um trecho de 28 km, mas que demoraria quase duas horas. Para aproveitar a luz do dia apertei um pouco o ritmo e cheguei ao ponto de controle no início da noite.
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Chegada em São Miguel do Passa Quatro-GO – 3º dia / 813 km (Arquivo Pessoal)
Fiquei por um tempo aguardando os demais colegas e nada de chegarem. Imaginei que tivessem seguido e continuei até o posto em Cristianópolis na expectativa de encontrá-los no caminho ou mesmo no posto. Chegando recebi a informação que ainda não haviam passado, e aproveitei para comer uma lasanha e tirar um cochilo de 15 minutos. Notei que tínhamos desencontrado e a partir de então o pedal seria solo.
Segui para a cidade de Pires do Rio-GO, 58 km do ponto onde eu estava. No trajeto, parada na cidade de Santa Cruz de Goiás, 31 km após o ponto que havia saído, por segurança, mais uma pausa para sono.
Em provas de longa distância devemos respeitar o que o corpo pede, principalmente na questão do sono.
Breves cochilos recompõem a parte mental, faz com que o corpo sinta mais disposto. Às vezes um de sono de 5 minutos é suficiente para mudar o rendimento. Em provas que entram a noite tenho por costume fazer pequenas paradas a cada uma hora de giro, para ter essa recuperação. E quando fica insuportável aumento o tempo para 10 ou 15 minutos.
Restando 15 km para chegar em Pires do Rio-GO, recebi a companhia do casal da tandem (Darley e Júlia). Super fortes e determinados, senti-me mais motivado para acompanhá-los. Chegamos juntos no ponto de controle, onde encontramos com o organizador do brevet que nos disponibilizou lanche, isotônico e água.
Tivemos que ser breves na parada, havia pouco mais de 8 horas para percorrer 130 km. Começava uma corrida contra o tempo. Considerando que estávamos com quase 67 horas de prova e não conseguia manter o mesmo rendimento dos dias anteriores, certamente o tempo não era nosso aliado. Mesmo assim segui com o objetivo de fazer o meu melhor. Coloquei como meta chegar na próxima opção de parada, na cidade de Tomazinópolis-GO, 52 km após o ponto onde eu estava, antes das 6h da manhã.
Foram muitos desafios neste trecho. Além do sono que já estava demais, a pista tinha muitos buracos (passei dentro de um deles sem ver) além dos quase 18 km de subidas, e nos momentos em que eu pensava em dar uma parada via gambás, raposas e porcos espinho. Até pensei que fosse alucinações, normais para quem está como noites viradas, mas de fato eram bichos.
Às 5:45 chegava no ponto com estrutura para um sono. Quando digo estrutura, é um piso frio e teto. Foram 15 minutos bem aproveitados. Acordei com o despertador do celular e um frio intenso. Verifiquei a temperatura, estava 6 °C., mas não era momento para pensar nas dificuldades.
Perguntei a funcionária da lanchonete se poderia servir pelo menos um café, mas disse que somente quando o patrão chegasse com os salgados e bolo. Como o tempo não espera, tive que sair da forma que estava. Ainda restava duas barras de cereal, dois GEL e água. E assim segui rumo aos últimos 79 km.
Deveriam ser feitos em 4 horas e 20 minutos. Um cálculo rápido, já em cima da bike, precisaria manter a média de pouco mais de 20 km/h. Em condições normais seria um passeio, porém por mais força que fazia não chegava a tal média. Mas com o aquecimento das pernas, o rendimento foi melhorando e a média subindo.
A chegada até a BR-050 predominava plano, e a sensação era de que estava indo bem, acima da média esperada. Fiz uma parada rápida no viaduto de acesso à rodovia. Como o sol já estava ficando mais forte retirei um pouco de agasalho ficando com a blusa de manga comprida e segunda pele. Apertei mais ainda o ritmo, estava descendo bem e conseguia subir com um bom desempenho. Fiquei animado com a possibilidade de chegar em tempo.
Passei pelo ponto de controle Hotel Sonho Verde, fiz o registro ainda na bike e segui firme. Restavam 30 km e 2 horas para finalizar o tempo. Para não ficar preso a distância restante e agoniado com a passagem das horas parei de consultar o GPS e mentalizei em fazer a força que conseguisse. Era só manter 15 km/h de média que estaria tudo certo.
Veio o que todos temem nesse trecho final, a subida infinita seguida de uma ventania forte. E neste caso todo vento é contra neste momento. Fazia força e não rendia, o corpo todo dolorido não ajudava a pedalar em pé. Por mais esforço que fazia não via qualquer evolução. Busquei comida, não tinha mais, peguei a garrafa d’água e estava zerada. Quando estava perdendo a esperança de chegar no prazo, encosta o casal da tandem e diz uma palavra que me reanimou, “confia que dá certo”. Fomos nos motivando, lutando contra o vento, contando as placas que sinalizavam a chegada em Cristalina. Eu falei, “vamos, vai dar certo”. E as subidas não acabavam, o vento não parava, as forças vinham não sei de onde. KM 0, chegada no perímetro urbano. Pensei, “chegamos”, quando a Júlia comenta, “ainda falta 5 km”. Meu Deus.
Toda chegada a uma cidade que indica que falta essa distância parece que nunca chega. Mas vamos mantendo o ritmo. Última subida e logo chegamos em um plano, pouco depois avistamos o hotel de chegada. “Onde devemos entrar?”, perguntou o Darley. “Segue mais adiante”, eu disse. Passou um posto, e pegamos a pista de acesso. Primeira curva a direita, mais outra e estávamos na rua do hotel. Restava 1 minuto para encerrar o prazo quando paramos na porta do hotel. Difícil não segurar as lágrimas neste momento, alguns vieram correndo para nos receber, vibrando por termos conseguido. Passou tudo que vivenciei nas 75 horas nesse minuto restante.
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Finishers: Júlia, Darley e Flávio – Ainda conseguíamos sorrir.(Arquivo Pessoal)
Fazer agradecimentos neste momento final é correr o risco de deixar muitos de fora sem querer, mas sou muito grato a Deus pela saúde, pela família que motivou minha participação e pelo reforço nos laços de amizade. Por fim, um agradecimento especial ao casal Darley e Júlia, tenho plena convicção que se não tivessem aparecido no momento de minha maior baixa talvez não teria conseguido o sucesso. Foram “anjos” que chegaram para incentivar.
 

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